Instalados na zona moderna (Ville Nouvelle) pois era completamente impossível encontrar um hotel com estacionamento dentro da Medina, que é só uma das maiores e mais confusas do Mundo, após um relaxante final de tarde na piscina decidimos aventurar-nos pelas ruas em busca de uma refeição, meio lanche tardio, meio jantar adiantado, uma vez que tínhamos “saltado” o almoço com umas bolachas e um gelado numa estação de serviço.
Caminhando pela avenida principal ficamos desde logo impressionados com o reboliço da hora de ponta (ou será que é sempre assim?)… a juntar ao trânsito que é muito confuso, caótico até, pois já não bastava todos os carros que por ali circulam, como é preciso adicionar todas as motas, bicicletas e até pessoas que se passeiam no meio da rua, estava instalada a verdadeira feira pelas ruas.
Alheias á nossa perplexidade ao observa-las, as pessoas atropelavam-se nas bancas improvisadas onde de tudo se vende: desde comidas confecionadas em panelas negras de tanto uso em condições de higiene que deixam muito a desejar até roupas e sapatos novos e em segunda mão misturados e amontoados em pilhas onde cada um vai pegando e experimentando o que quer e como quer, tornando quase impossível controlar se devolvem a roupa “nova” experimentada ou lá deixam a que traziam no corpo…
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E nesse dia fizemos outra descoberta… em Marrocos as passadeiras são os sítios mais perigosos para atravessar uma rua! Ninguém, repito, ninguém pára numa passadeira para deixar atravessar um peão…são riscas brancas meramente decorativas nas ruas de Marrocos que confundem os europeus que se atrevem a lá atravessar!
Não nos alongamos muito mais e regressamos logo após o jantar ao hotel pois o dia tinha sido bem longo e cansativo e queríamos estar “frescos” para no dia seguinte explorar Fez, a mais antiga das cidades imperiais de Marrocos, um misto de centro histórico com capital espiritual e religiosa, considerada Património Mundial da Humanidade pela UNESCO.
No dia seguinte logo pela manhã decidimos apanhar um táxi para nos dirigirmos à famosa Medina. Tínhamos informações que eram a melhor forma de para lá nos deslocarmos dada a dificuldade de estacionamento e também porque são de tal forma baratos que não compensa ir de outro modo. E de facto, com menos de 2 euros (20 dirhams) fizemos a viagem sem qualquer sobressalto que não o da péssima condução do taxista!
Logo que saímos do táxi fomos abordados por um sujeito que se intitulava guia oficial e nos oferecia os seus préstimos para nos acompanhar na visita alertando-nos para a extensão e complexidade da antiga Medina.
Eu levava o percurso previamente estudado… sabia exatamente os locais que queria visitar e a todos eles o guia disse que nos levaria. Ainda ponderamos recusar e lançarmos à descoberta por nós próprios mas acabamos por aceitar aquela ajuda até porque o preço pedido (150 dirhams) não parecia desajustado…(cerca de 15€). Mas depois verificamos que uma tour oficial que ronda ou 17/20 €... acabamos por ter sorte que correu bem mas soubemos que há muito “conto do vigário“. Fica aqui o link da tour para quem não queira arriscar !!!
Passados poucos minutos já tínhamos percebido que a ideia de fazermos a visita sozinhos era completamente disparatada, porque é IMPOSSÍVEL não nos perdermos na Medina de Fez! Confusa mas única, com ruas, ruelas e travessas semi secretas, algumas com a largura dos nossos ombros, suportadas por escoras de madeira que mantêm os edifícios de pé e cuja autenticidade nos deixava maravilhados é um labirinto total.
Graças às pérgulas de madeira que cobrem as ruas tínhamos a maioria do tempo sombra garantida sentindo-nos protegidos do sol e do calor intensos. Burros, carroças, motas e carrinhos de mão também por ali passam, sempre a alta velocidade, alheios aos turistas que por ali se passeiam, daí que foi de grande utilidade aprender que ao grito “Balak” o melhor mesmo era desviarmo-nos para deixar passar pois tal significa “cuidado” !!!
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O chão estava repleto de gatos!!! A maior parte deles a dormir, magros de fome e de sede, exaustos de fraqueza e abandono ou a deambular, quase invisíveis aos olhos de quem passa, pelas ruas movimentadas da Medina ou ainda atentos ao “homem do talho” na ânsia que algo sobre e lhes permita uma esperada refeição. Disse-nos o guia que por serem auto suficientes são considerados os animais dos pobres, ao contrário do cão que já necessita de outro tipo de cuidados incomportáveis para as “bolsas vazias” daquele povo.
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Acompanhados pelo guia sempre muito prestável a indicar-nos todos os locais onde se poderia uma boa fotografia sempre com a explicação “na ponta da língua” formos passando por todos os pontos de interesse: desde o relógio de água, feito em madeira que embora não esteja em funcionamento nos impressionou pela sua “avançada tecnologia” passando pela Mesquita de Qarawiyyin, a mais velha mesquita de África, até á Medersa Bou Inania - a maior e mais luxuosa de Fez e talvez de todo o país, instalada de forma impressionante no meio da confusão da Medina, com uma beleza arquitectónica indescritível, revestido a mármore com vitrais e azulejos que lhe davam jogos de cor de bradar aos céus.
O destino “final” eram as famosas tinturarias da cidade onde se curtem as peles e que são conhecidas pelas suas cores vivas e pelo o seu odor…
Mas pelo caminho tivemos a sorte de entrar em contacto com um lugar mágico que marcou este dia e atrevo-me mesmo a dizer, a própria viagem…
O nosso guia chamou-nos a atenção que estávamos a passar ao lado de uma escola onde as crianças de tenra idade aprendem o Alcorão e paramos à sua porta, semi-aberta… A professora chamou-nos e eu tive que entrar! As crianças estavam sentadas em carteiras de madeira e trabalhavam num quadro de lousa preto numa sala de poucas dimensões mas limpa e iluminada… Sentei-me atrás delas tendo reminiscências daquela vez que também visitei uma escola na Índia, essa com condições muito precárias e até desumanas. Senti-me uma privilegiada por estar ali numa situação tão autêntica e única!
Após um improvisado canto do “Frere Jacques”, talvez porque nos confundissem com turistas franceses, despedi-me com uma foto do momento que para sempre guardarei com muito carinho. São estes pequenos momentos que fazem cada viagem, que a tornam tão especial e que nos fazem nunca querer parar…que nos envolvem, que nos realizam, que viciam!
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Rumámos então em direcção à tal zona dos curtumes que não teriam sido nada fáceis de encontrar, diria mesmo que era impossível os termos feito sozinhos… Numa rua igual a tantas outras e sem que nada o fizesse prever o guia entrou por uma porta “manhosa” e subimos umas escadas estreitas e a pique... no cimo, vimo-nos rodeados de malas, sapatos, casacos e tudo o mais que se pudesse imaginar em pele, de todas as cores e feitios, expostas em salas amplas e bem arrumadas, com ar condicionado, que apareciam umas atrás de outras, fazendo-nos duvidar que ainda estávamos no mesmo edifício por onde tínhamos entrado!
E de repente, abrem-nos uma porta que dava para uma varanda com vistas privilegiadas sobre os tanques onde são tingidas as lãs e o couro com várias cores, de diferentes tonalidades.
Era um pouco diferente do que esperávamos… estávamos na véspera de se iniciar o Ramadão e por isso a atividade por lá estava muito reduzida. Apenas dois ou três trabalhadores faziam limpezas e daí que as cores vivas que tínhamos visto nas fotografias davam lugar a tanques vazios com algumas cores barrentas e “desensabidas”! Mas por outro lado, escapamos do famoso cheiro nauseabundo a gordura ressequida e podridão daquela micro atmosfera.
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Estava a terminar a “visita guiada” e após nos despedirmos do nosso guia havia que tentar regressar á porta “Bab Boujloud” por onde tínhamos entrado, famosa pelos seus dois lados de cores diferentes, azul do lado exterior representando a cor de Fez e verde do lado interno representando a cor do alcorão.
Mas após duas voltas tentando seguir as indicações que nos tinham sido dadas, estávamos “perdidos”…o pior nem era não saber o caminho pois nem que seguíssemos “sempre em frente” acabaríamos, mais tarde ou mais cedo, por chegar a uma da portas desta cidade amuralhada. O problema é que agora, sem guia, estávamos “vulneráveis” e à medida que íamos percorremos a Medina éramos agora assediados para todo o tipo de negócios, quer por miúdos, quer por graúdos que insistentemente, iam tentando aliciar-nos na esperança de ganhar alguns “tostões”.
Decidimos então recorrer aos préstimos dum rapaz que aparentava uns 8 anos de idade e que se aproximou sem medos. Meio encardido, com arranhões nos joelhos, chegou-se ao pé de nós e meteu conversa apercebendo-se que estávamos perdidos. Esteve connosco apenas o tempo suficiente para nos colocar na “via principal” e já reclamou a sua “propina”… Um simples “Shukran” (obrigada em árabe) nunca é suficiente por estas bandas !!!
Já no caminho certo fomos então apreciando o coração desta Medina, onde os cheiros se intensificam, tal como os restantes sentidos, e tomam conta de quem passa e é de fora. Das fragrâncias das especiarias e dos temperos das carnes a grelhar, às peles que forram malas e sapatos expostos em muitas lojas, por tudo fomos passando agora de uma forma mais descontraída misturando-nos com a multidão.
Queríamos ainda ter uma noção mais abrangente daquela velha cidade, agora “de fora”, de um ponto alto da cidade e para tal recorremos de novo ao serviço dos “petit táxi”. Não foi fácil encontrar algum disposto a nos transportar até ao ponto que tínhamos no nosso guia turístico, junto ao cemitério porque, viemos depois a descobrir, era demasiado perto e portanto não compensava a viagem…Mas lá conseguimos!
E de facto as vistas desse ponto são privilegiadas… Para além de se ter noção da muralha que envolve a Medina, das suas portas imponentes, e do esquema labiríntico das suas ruas e ruelas onde sobressaiam as inúmeras parabólicas brancas e os minaretes das muitas mesquitas por lá espalhadas, também podíamos observar a encosta por onde se estendia o cemitério árabe, com as suas placas de mármore ordenadas de forma metódica de forma a que todos os que lá jazem fiquem com a cabeça virada em direção a Meca…Dávamos assim por concluída a nossa visita á maior cidade medieval viva do Mundo, Fez El-Bali, que marca pela sua autenticidade e história.
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Mas este dia não era apenas mais um… era dia 6 de junho... tínhamos atingido o nono mês do calendário islâmico que, por ser lunar, não calha sempre na mesma data. Foi nesse mês que foi revelado o Alcorão – o livro sagrado do Islão e daí ser o mês escolhido para dar inicio a um dos momentos mais importantes para Marrocos e para todo o mundo muçulmano: o Ramadão.
A partir do momento em que neste dia se visualizasse a lua e durante um mês o mundo árabe cumpriria o ritual do jejum, que é um dos cinco pilares do Islão, juntamente com a peregrinação a Meca.
Em termos leigos e práticos, durante o Ramadão os Muçulmanos pedem perdão pelos pecados passados e orientação divina para evita-los no futuro, baseado num jejum tipo “cura de desintoxicação” dos vícios do dia-a-dia. Isto é, do nascer ao pôr-do-sol não comem, não bebem, não fumam, não fazem sexo, não fazem nada em excesso e rezam mais vezes do que é habitual.
O jejum é obrigatório para todos os muçulmanos que chegam à puberdade. É também uma forma de marcar a entrada na vida adulta. Não jejuam apenas as pessoas doentes, as grávidas, as mulheres em fase de aleitamento e os idosos.
Ou seja, estávamos em Marrocos numa época que nos permitiria uma experiência de viagem diferente, tínhamos a oportunidade de nos envolver na cultura do país e viver de perto, para o bem e para o mal, as suas tradições!
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